sábado, 7 de dezembro de 2013

Águas Solventes

Por Patrícia Leite

Meados de junho, cinco da manhã em Brasília. Depois de mais uma noite insone e atormentada por agendas e compromissos a serem cumpridos, resolvi sair da cama e dar uma pedalada. Perdida em pensamentos, deparei-me com uma cena, no mínimo, insólita. Um homem, de mais ou menos 1,80m, cerca de 50 anos, pesando, aproximadamente, 90 quilos, negro, morador de rua, tomava banho, próximo ao balão que divide as quadras 409 e 209 norte. Ele estava sem roupas, mas nua fiquei eu, diante de toda aquela estética desprovida de moral. Não havia nada de sexy na cena, mas havia lirismo.

Em meio às flores do jardim, munido de uma caneca de plástico e uma lata d’água velha e enferrujada, o homem escovava os dentes, lavava o cabelo, fazia barba e cantarolava algo ininteligível. Neste momento, o sol, que ainda dividia espaço com a lua e as luzes da cidade, coloria de avermelhado o céu do cerrado. O cenário parecia uma tela, da primeira fase (1860), de Claude Monet — período em que a figura humana foi tema recorrente do artista. não havia trânsito, o vento frio assobiava um solo triste e uivante. Eu ali parada a observar um ato simples que zombava, de certa maneira, dos meus tormentos interiores.

Depois do banho, ele vestiu-se vagarosamente, atravessou a rua, guardou os pertences por trás da caçamba de lixo, e, se pôs a ver as manchetes do dia, penduradas no arame da banca de jornal. Uma alegria genuína, de quem vive do nada, estava posta naquele (des)compromisso. Um dia após o outro, vive aquele homem. Sem contas para pagar, sem patrão, sem compras a fazer.

Perguntei-me se ele, de fato, sabia ler ou se estava apenas a olhar as imagens do periódico. Pareceu que ele estava a ouvir meus pensamentos, ao, de repente, largar o jornal, olhar para o dono da banca e exclamar:

― O inverno vai ser rigoroso este ano!
O proprietário da banca olhou para o homem, sorriu e respondeu:
― Certamente, não para você, Zé!

Um travo amargo, de vergonha, me despertou do transe em que me encontrava. Refleti durante o percurso de volta para casa, entre uma pedalada e outra, que o Zé estava preparado para o mal tempo. Era forte, sobreviveu, e, conscientemente, sabe disso. Agora, eu...

Algumas pessoas precisam de meias, cachecóis, casacos, padrões, esquemas, rotinas, luxo. Outras precisam, apenas, acordar, a cada dia, e tomar, no centro da urbanidade, um banho no asfalto.

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