Por Patrícia Leite
A tarde já ia lá pelo meio, não tardaria muito e o
lusco-fusco empurraria a porteira da fazenda para aboletar-se na varanda de Seu
Quinzinho.
Apesar disso – da ligeireza do tempo, o sol parecia não se
importar com o avançar do relógio e nos castigava. A temperatura era fatigante,
para dizer o mínimo.
Estávamos extenuados, meu preto e eu, quando fomos
recebidos por aquele sorriso largo do dono da casa.
Era para ser uma paradinha breve, um abraço e um dedo de
prosa, pois tínhamos ainda cinco quilômetros do CAMINHO DE CORA para
percorrer naquele dia.
Meus pés estavam me matando e, embora eu precisasse muito
continuar, me seduzia a ideia de dar uma paradinha rápida para conhecer os
personagens de “NO RASTRO DA POESIA, NO CAMINHO DE CORA”. Eu queria muito estar
com eles.
Há muito eu ouvia falar sobre eles e eles já me eram
familiares, mas eu ainda não os conhecia pessoalmente.
E foi com esse querer me rondando o pensamento que eu fui
chegando devagarinho, batendo palmas e gritando da porteira o tradicional:
Entramos assim que ouvimos:
Cruzei, praticamente me arrastando, os poucos passos que
separavam a porteira da varanda. Naquele dia, já tínhamos deixado para trás
mais de vinte e três quilômetros e eu estava muito cansada.
Seu Quinzinho foi logo nos saudando:
— Maranhão,
que surpresa boa! Preto também se apressou em cumprimenta-lo. Em seguida, me
apresentou:
— Essa é
Patrícia, minha namorada e também jornalista. Sorri, estendi a mão, encostei os
bastões [cajados] de caminhada na parede, tirei a mochila das costas e esqueci
os bons modos.
Mal cheguei e fui arrancando as botas e tirando as meias. Eu
sentia dor, muita dor nos pés.
Me joguei no primeiro banco que vi e... quando eu digo “me
joguei”, isso é absolutamente literal.
Para se ter uma ideia, há na varanda um banco de madeira largo
e comprido, quase da largura de uma cama solteirão. Não me fiz de rogada.
Depois de me descalçar, me deitei "de papo pro ar" e fechei os olhos. A única
coisa que eu conseguia pensar era que o mundo podia se acabar... Eu não sairia dali por dinheiro nenhum.
Creuza, mulher de Seu Quinzinho, ofereceu-me um suco gelado
e uma fruta-do-conde e tudo o que eu conseguia dizer era:
— Por
favor, água! Água, por favor!
Nem sei se foi Creuza que me entregou um copo de água
gelada ou uma de suas filhas, a Renata ou a Roberta. Eu estava com dor, tonta,
cansada e com muita sede. Nessa ordem. E foi nessa ordem que eu fui resolvendo minhas
demandas.
Quando as coisas começaram a fazer um pouco de sentido pra
mim, eu escutei a voz do meu Preto dizendo:
— Então, o quê? Respondi,
sem ter a menor ideia de onde ele queria chegar com aquela pergunta. E ele, com
uma paciência de Jó, disse:
— A gente almoça por aqui e
segue até a Caiçara e dorme na Thaís ou fica por aqui pra dormir?
— Você
é quem sabe, meu Preto! Respondi tremendo por dentro.
No fundo, eu sabia que ele
tinha de levar em conta o propósito derradeiro daquele trekking — tínhamos combinado de fazer parte dos trezentos
quilômetros do CAMINHO DE CORA – cerca de cinquenta quilômetros [1/6 do
percurso]. Assim poderíamos passar pela experiência da “peregrinação poética” e
usar o conhecimento amealhado na estrada, na roda de conversa que iria
acontecer em Pirenópolis, na noite do dia seguinte.
Em outras palavras, o plano – entre as muitas possibilidades que as longas caminhadas oferecem –, era minimamente
passar pela vivência do caminho, fazer descobertas, rever amigos, trocar
experiências e saber o que mudou desde que ele tinha passado por ali fazendo as
entrevistas e captando as imagens para o documentário...
Preto me lançou um olhar,
sorriu e seguiu conversando com seu Quinzinho.
— Seu Quinzinho o senhor
assistiu o meu documentário?
Enquanto isso, na cozinha, Renata, Roberta e Creuza se
movimentavam para providenciar rapidamente um lanche. Café com pão de queijo.
Assim que chegamos, as meninas se ofereceram para
prepararem um almoço. Mas, se eu almoçasse... aí é que eu não saia de lá de jeito
nenhum.
Todavia, ponderei mentalmente, um almoço na roça, preparado
num fogãozinho a lenha, era uma tentação extra que eu não conseguiria resistir.
Intimamente, Preto tinha
certeza que mesmo já tendo passado um ano da
primeira exibição do documentário,
no programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil e mesmo depois de ele já ter
sido reexibido, após ter conquistado o prêmio Braztoa de Sustentabilidade
2019/2020, na categoria "Mídia", seu Quinzinho e a família nunca
tinham visto o resultado final do trabalho realizado. Preto queria que eles
vissem.
Suspirei baixinho e, mesmo
pensando nisso tudo, arrazoei:
— Não podemos desconsiderar,
meu Preto, que você tem hora marcada para exibir seu documentário, em
Pirenópolis, e ainda participar de uma palestra. Ficar aqui hoje significa ter
que andar quase trinta quilômetros amanhã, chegar cansado e indisposto.
Meus pés que, diga-se de
passagem, tinham vida própria, gritavam:
— “Tá louca!! Diz logo que
vamos ficar aqui no Quinzinho. Eu não dou mais nem um passo hoje”.
Olhei para os meus pés cheios de bolhas, olhei pro meu Preto
com um olhar de súplica e embora ele estivesse igualmente com um ar abatido, estivesse
com os ombros doloridos do peso da mochila e o peso extra do enorme compromisso
do dia seguinte, ele não se queixava de nada e depositou a decisão de ir ou
ficar nas minhas mãos. Mais tarde meus pés decidiram por nós.
Vez ou outra ele me lançava um olhar aguardando minha resposta,
e enquanto eu não respondia, ele seguia conduzindo uma conversa informal e animada.
— Seu Quinzinho, eu trouxe o
documentário em um pen drive pra mostrar pra vocês, disse ele com uma alegria
de menino na voz. Tem uma hora de duração...
Fez uma cara de quem fazia
mentalmente alguns cálculos.
Certamente somou o quanto
tínhamos de percorrer com o tempo que restava de sol, mais o tempo do documentário...
De
repente, ainda olhando para os meus pés, eu disse:
— Vamos assistir, vamos
ficar, vamos almoçar, vamos pousar aqui!
Levantei os olhos em tempo
de flagrar uma ruga de preocupação se dissolvendo na testa do Preto. Ele também
queria ficar.
Seu Quinzinho deixou vazar
um grande sorriso...
O sol logo iria se esconder atrás da serra. Preto e eu
precisávamos tomar um banho antes de escurecer e a água para o banho a céu
aberto ficava há alguns metros da casa. Mas esse não era exatamente um
problema. A questão é que ele tinha esquecido o chinelo e nós tínhamos de seguir por uma trilha mateira, cheia de pedrinhas e espinhos.
Num esforço sobrenatural, reunimos as nossas últimas gotas
de energia para irmos tomar banho na bica.
Nesse instante, Creuza olhou para os pés descalços do meu Preto
e ofereceu um chinelo. Ele de pronto aceitou. Subimos a trilha calados, lado a
lado. Ele foi o primeiro a entrar e todo animado disse:
Eu fui. Mas nem
preciso dizer que fiz um escândalo debaixo daquele jorro d’água. Quem me
conhece sabe que eu detesto água fria.
Todavia, deixo aqui uma confissão. Depois que me vesti, achei
que aquele banho foi a melhor coisa que podia ter me acontecido.
A água gelada me tirou a dor dos pés e a dor do corpo imediatamente.
Foi uma massagem gélida. Um banho terapêutico. Como diz o povo da roça: um
banho desses é o mesmo que tirar a dor com as mãos. E foi.
À noite, caímos num converseiro danado, depois do jantar, que
aliás faço questão de registrar, foi mais que um jantar. Foi um manjar dos
Deuses, com aromas e sabores que vou carregar pra sempre nas minhas memórias “afetivo-gastronômicas”
mais intensas e que deixaria qualquer chefe de cozinha boquiaberto.
Os pratos tinham o gosto das riquezas da roça: simplicidade
e zelo temperavam um cardápio farto: costelinha de porco, frango caipira, arroz
branco, feijão, verduras frescas... Hummm!! Dá água na boca só de lembrar.
Foi um momento mágico. Conversa boa e culinária afetiva apimentando
a vida.... Uma delícia!
O fogo ainda crepitava sob as panelas e o fogão a lenha
aquecia agradavelmente os ânimos quando, entre uma conversa fiada, um naco de doce
de leite e um gole de café, seu Quinzinho — que
queria ir na bica tomar um banho —,
gritou de fora da casa:
— Creuza, cadê meu chinelo?
E ela, de dentro da cozinha, respondeu numa ligeireza que só vendo:
— Tá no pé do Preto de Pat!
Quase emendando uma palavra na outra. Quase um trava-línguas. Foi uma
gargalhada só.
Um tom de familiaridade e
aconchego se juntou ao cheiro de fumaça de madeira seca queimando. Era o riso
adoçando o fim do dia. Estávamos misturados. Não éramos mais estranhos, nem
visitas, éramos amigos.
Preto que chegou na cidade
como documentarista premiado e que era esperado com pompas, despiu-se de todo o
aparato solene e do glamour. Num piscar de olhos ele era apenas o moleque
traquina e sapeca dos tempos da Madre de Deus, do seu saudoso Maranhão.
Em benefício da verdade, ele
criou propositalmente essa intimidade e invocou o Nuca [seu apelido de menino]
que ainda o habita, quando começou uma história que quase fez Creuza acreditar
que ele tinha conseguido negociar com o Cacique de minha tribo – o que ele diz
ter sido o melhor dos seus escambos.
Contou uma longa trama que
envolvia um grande acordo comercial entre negros e índios e disse a todos que
trocou dois espelhos e um colar por mim.
Creuza acreditou em tudo o
que ele disse até que eu revelei que toda aquela história não passava de uma
grande brincadeira.
Sim, sou descendente de
índios e ele de negros e, de acordo com meu Preto, sou também o templo sagrado
para onde ele leva e deposita a melhor de suas ofertas, o melhor de si: “sou sua
poesia, sua arte de viver e amar”.
E eu acredito. Ele me faz
acreditar e, de repente, sou mais que conto ou lenda.
Sou as pérolas de um terço,
sou altar imaginário dos poetas, sou templo, pois que a arte de viver um amor verdadeiro
é catedral, é matriz, é também relicário e reino, onde ora sou a mãe terra, ora
sou céu.
Todavia, o que quer que eu
seja, ou onde quer que eu esteja, serei sempre enfeite e reflexo...Serei sempre
Colares... Espelhos... Poeta, poema e poesia...Ou, nas palavras de Creuza,
serei sempre riso e saudades...
Foto: Maranhão Viegas
*No sofá estão sentados Seu Quinzinho, Roberta e o Joaquim [neto de seu Quinzinho e filho de Roberta].
*Do lado de fora está Renata.
* Na cadeira ao lado da porta está Creuza.
Todos assistindo o Documentário “NO RASTRO DA POESIA, NO CAMINHO DE CORA”