Bora lá...
Não tem nada mais apavorante para um jornalista do que não saber por onde começar um texto. Raras foram às vezes que isso aconteceu comigo. E, nestas poucas ocasiões, o problema, em geral, foi excesso de inspiração. Hoje, não foi diferente.
Por mais estranho que possa parecer, apesar de já ter escrito algo na casa de cinco mil crônicas, centenas e centenas de textos jornalísticos, poemas, artigos, colunas, enfim... Milhares de textos. Alguns, diga-se de passagem, para homenagear pessoas das quais pouco ou nada gosto.
Hoje, dia em que queria homenagear alguém extremamente especial, as palavras me faltaram. E olha que as palavras sempre me foram generosas e jorraram com facilidade e abundância a vida toda. Bom, provavelmente, porque hoje eu é que me sinto incrivelmente homenageada.
O fato é que, há algum tempo, tive um sonho incrível de que eu receberia um presente para todo o sempre. Um tesouro que me chegaria sem aviso, mas que eu teria que me esforçar muito para que ele fosse realmente meu. Eu teria que fazer por onde merecê-lo. Ainda acho que não o mereço. Mas me esforço, diariamente, para ter este merecimento.
Pois bem...Depois deste sonho, acordei muitas manhãs ansiosa, revezei noites em claro com sonos de dia inteiro. Comi feito desesperada, para depois colocar tudo pra fora.
As mudanças de rotina não pararam. As físicas... também não. Meu peso aumentou, os seios cresceram, o quadril alargou, as pernas incharam, as costas ficaram em brasa, o nariz virou uma chapoca...
Fui ao médico, numa fria manhã de maio. Aquele quadro caótico tinha que ser mudado. E foi... Piorou terrivelmente. Durante sete longos meses, revezei os dias de internação com uma ou outra breve saída do hospital. Sim, aquele final de 1987 me reservava o maior regalo que eu poderia vir a sonhar em ter. Estava grávida.
Não foi uma nem duas vezes que disse em minhas orações: Deus, obrigada pelo presente, mas não dava para vir com menos dor, menos mal-estar, menos cansaço???
Depois , conclui que não. Aquele lindo bebê veio ao mundo sem o coração bater, sem respirar, sem reagir aos estímulos dos aparelhos, dos choques elétricos. Temi pelo pior.
Ainda meio sedada, cansada e absolutamente fraca ouvi o médico dizer: menina, 2 quilos e 100 gramas, 36 centímetros. Sem reação.
Juntei um tiquito de força que ainda me restava, levantei a cabeça e disse: Não desista, minha pequena, temos uma missão para cumprir. Você é o tesouro que me foi prometido. Lute.
E aquele serzinho minúsculo sequer chorou, apesar das palmadas do médico, dos choques elétricos, do oxigênio em suas pequenas narinas...
Ela simplesmente apenas abriu os olhos, espreguiçou, soltou uma espécie de gemido, como se estivesse despertando de um longo estado de sono e de descanso. Nascia uma guerreira, pronta pra enfrentar as batalhas que estavam por vir.
Nos primeiros meses, dormia muito, não chorava nunca, se alimentava do mínimo, sorria com doçura, por trás daqueles olhos sempre semicerrados.
O pai e eu sonhávamos com seu futuro, o primeiro dia na escola, as aulas de dança, de natação, a primeira comunhão, o casamento... Como guiaríamos aquela pessoainha tão indefesa até a fase adulta. Responsabilidades, despesas, coisas da vida prática. O futuro nos reservava surpresas inimagináveis.
Os anos passaram rápido. Aquele espírito velho, vivendo naquele corpo de criança, sempre tinha algo a me ensinar. Sempre via o lado bom de tudo. Me ajudou a espalhar entre os parentes e amigos que o único caminho a ser seguido é o caminho do amor. Me ensinou a esperar, doar, perdoar. Foi como muita alegria que vi a metamorfose acontecer.
De repente, quando me dei conta, aqueles 36 centímetros se multiplicaram. Um gigante com pouco mais de um metro e meio, me ensinou e ensinou a todos que você pode chegar no mundo sem estardalhaço, pequena, leve, sem chororô. Mas você não pode estar nele em silêncio.
É preciso ter discurso e o discurso tem que acompanhar a ação e a ação tem que virar exemplo e o exemplo virar reflexão e a reflexão tem que transformar e a transformação deve trazer felicidade. Porque ser feliz é uma decisão. É uma tomada de posição. E esta condição de ser e estar no mundo é o nosso maior tesouro.
E foram necessários 26 anos para que eu tomasse consciência do tamanho do meu patrimônio. Sim, filha, você realmente é minha riqueza, meu tesouro. Sim, aquilo não foi apenas um sonho, foi um sinal. Sim, agora sei porque me faltaram as palavras. Porque este texto não trata de homenagear você. Mas, antes e sobretudo, este texto trata de dizer ao mundo que amar incondicionalmente é mais que riqueza, é mais que um tesouro, é um legado.