quarta-feira, 24 de agosto de 2022

PORÕES

Por Patrícia Leite

Foto: Patrícia Leite









Abri a velha porta da memória. A tampa, emperrada pelo tempo, pelo desuso, demorou a revelar o que estava do outro lado. 

Encontrei lá a bailarina de sapatilhas de ponta, coque enfeitado de renda, colantt e meia rosa e a empinada saia de tule.

O espelho, a barra, os ensaios… A dança clássica desabrochando a menina-moça. 

De repente, o ar ficou tomado pelo cheirinho de bolo de laranja, ainda quente, de vovó Dalva. Lanche certeiro das sextas-feiras depois do ballet. 

Segundas e quartas eram regadas a pão com qualquer coisa… Manteiga, requeijão, queijo, mortadela… Sextas eram especiais. 

A mesa grande de 12 lugares, sempre posta,  ficava logo na saída do corredor – que de um lado dava para os quartos e para a cozinha e do outro para a entrada da sala em “L” ( ÉLE) –, do espaçoso apartamento da 203 SUL. 

Impaciente, não foi uma e nem duas vezes que subi de dois em dois os degraus dos seis andares do bloco F, onde morávamos, até tocar a campainha do apartamento 605, porque me achava ligeira e não queria esperar o elevador. 

Tinha pressa para alcançar o bolo sendo desenformado. E comer aquele cheiro, antes dele se dissipar no ar.

Sim, comi esganada muitos cheiros antes de colocar nacos quentes na boca e pegar farelos com dedos lambidos de quem comeria mais, muito mais. 

Café coado em coador de pano, açúcar, leite e bolo de laranja foi o que encontrei, hoje, quando desemperrei a porta das minhas  memórias primais. 

E depois enxerguei as cantigas, a algazarra dos meus 8 irmãos, as risadas de vovô Lima, meu pai chegando de mais uma viagem de trabalho… 

Nostalgia feliz de quem nasceu em família grande e tem armários e muitas gavetas no porão das memórias afetivas.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

CHÁ DE POESIA

Por Patrícia Leite


E, quando a tristeza aperta, o dia começa com composições, que passam pelo “Seu Olhar e o Meu”, música autoral para inundar a casa com rimas.


Sim, olhamos na mesma direção e ela é romântica, sensível e choramos os descaminhos de outras gentes.


Exercitamos o respeito pelos nossos avessos. Eviscerados, procuramos o caminho do meio e esse não pode ser outro que não o AMOR…


Servimos chá de poesia em “xícaras inglesas CORALINAS”.


E nossos olhos CORAM deixando verter lágrimas quentes…


E escolhemos vestir verde e amarelo, porque ninguém pode nos tirar nossos símbolos maiores. 


Somos nação, antes de ser qualquer outra coisa. 


Nossa magna-carta nasceu porque pretendia ser justa e oferecer igualdade. Não é baralho e pedidos de mão-de-sorte em jogos de azar. 


Não vou poder levar RAVI pro desfile de 7 de setembro. É perigoso, alertam meus amores. 


Mas farei meu secreto protesto com flores e enfeitarei minha casa com girassóis. 


Que possamos todos ser “flor do sol” e “girar o caule” do espírito em direção ao sol durante esta fase de amadurecimento da humanidade. 


Nos dias nublados sejamos o SOL de nossos amores para que sigamos fortes e valentes para atravessar a tempestade e comemorar a vida, pois que somos “resistência” poética, somos canção e, em nossa mesa de toalha azul,  ofertamos flores e camomila.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Umami, quinto sabor

Por Patrícia Leite
[28.1.2022]

Foto: Patrícia Leite













 


– Sirva-se à vontade, por favor.

 

A mesa estava posta com nossa comida preferida. O vinho tinto era perfeito para a ocasião e guardava segredos, na temperatura adequada, para serem revelados no decorrer da noite.

 

No ar, um buquê singular...  Uma mistura eclética de frutos do mar, pólvora recém-queimada, parafina, shampoos, cremes e os perfumes de nossas peles.

 

O ambiente era íntimo. Meia luz. Velas acesas. Chamas douradas dançando nos pelos, nas faces, nos olhos, nos espelhos e nas pernas nuas...

 

As labaredas caminharam para além da nossa carne. Rodopiaram pela casa, em todos os lugares, nos móveis, nas cristaleiras, no chão negro do porcelanato.

 

Sentamos um frente ao outro. Numa distância em que nossas mãos pudessem se tocar sem esforço.

 

Afastei para o meu lado direito o vaso de flores do campo que enfeitava o centro da mesa, mas que não me permitia vê-lo. 

 

Sorri. Ele sorriu de volta.

 

– Melhor desse jeito. Assim te vejo.

 

Sem tirar os olhos de mim, ele pegou a garrafa Camino Real – Cabernet Sauvignon. Abriu. Depositou o vinho na taça com mais generosidade do que pede a etiqueta.

 

Gracejou, maliciosamente.

 

– Intenso! Disse.

 

Devolvi a provocação.

 

– Belas lágrimas rubras. Uma estrada, um caminho que leva ao fundo. Um mergulho. Embora se pareçam mais com longas pernas abertas a oferecer-se. Um convite à degustação. Sem dúvida.

 

Girei a taça, sorvi as notas. Revelei.

 

– Ameixa PRETA [madura], couro curtido, carvalho, fumaça... Pernas de rubi do Vale do Cachapoal...

 

Não precisamos dizer um ao outro palavra alguma... Semicerramos os olhos apenas.


 “Suspendemos o tempo”, relativizamos a contagem das horas. Voltamos ao pé da Cordilheira... [Re] visitamos a aventura Andina. Num zás- trás... fomos e voltamos.

 

A nossa poética está na maneira de olhar o mundo e CONTER determinados eventos, brincar com a dubiedade das palavras, isolar-se do meio externo...

 

A nossa magia tem morada confortável na dinâmica de “encapsular” especiarias.

 

Sabores perfeitamente integrados. “Paleta gastronômica” – memórias gustativas que oferecem sabores peculiares a existência.

 

Urge temperar as horas com a mais perfeita explosão de sentidos. Sempre!!

 

– Ergamos um brinde, eu disse! Ao quinto sabor – Umami!!

 

Ele apenas me olhou com aquele olhar amadeirado de quem deixa as palavras amadurecerem no seu barril pessoal.

 

– Segui dizendo: Sim, há um quinto sabor. Ele está na soma. Eu o chamo de poesia. 

 

Baixinho, quase imperceptível, mas emprestando uma certa mística àquele ambiente, tocava na “vitrolaRelógios de Sol.

 

A mansa voz de Nei Lisboa se espalhava pelo ar e preenchia os espaços com a canção Pra te Lembrar.  


Nada é por acaso. Dancei com a taça elevada um pouco acima da minha cabeça. Voltei ao brinde.

 

– Sirvam-se de nossa poética todos os que tenham capacidade de enxergar nela o verdadeiro sabor da vida.

 

Preto ergueu a taça, tilintou sonoramente os cristais e respondeu:

 

– Tim...Tim... Aos capazes!!

 


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

ASAS DA POESIA

Por Patrícia Leite 
[19.1.2022]

Foto: Patrícia Leite













Seis da manhã. Acordei. Abri os olhos lentamente e pela fresta da cortina do nosso quarto vi um arco-íris “aprisionado” nos vidros das janelas.

Os mais céticos diriam que era apenas os resíduos do  limpa-vidros que passei na vidraça no dia anterior e que não havia sido removido devidamente.

Prefiro pensar que o tal fenômeno óptico de sete cores que flanava em minha janela era mais do que a refração das infinitas gotículas mergulhadas nos raios de sol... Era o revérbero da luz dos poetas. Arco-da-aliança dos amantes.

Nesta casa moram dois poetas, no mínimo. Vivos e atuantes. Mas é bom que me apresse em dizer que a biblioteca da sala está cheia de gigantes que nos inspiram.  

Fernando Pessoa, Eduardo Galeano, Manoel de Barros, José Saramago... Preto e eu voamos nas asas desses monstros sagrados da poesia.

Sempre estamos nesse voo. Céu de brigadeiro. Acreditamos que a poesia salva. E salva mesmo. Não tenho dúvidas.

E é lá – no último andar do prédio em que moramos –, que fica nosso céu particular. O verdadeiro céu da cidade. Não tem erro. É só seguir as placas...

Antes mesmo de terminar de subir as escadas, de ir de um andar para o outro, a sinalização já pode ser vista. Sim, o céu é aqui!

E é do nosso “MARCÉU” que se avista o ”hipotético painel” de chegadas e partidas imaginárias. Caldeirão de ideias.

E é da cabeceira de “Águas Claras”, dessa pista enigmática dos sonhos, que taxiamos antes de partir para nossos voos.

É de lá que nos alvoroçamos a bater as asas juntos... Ou que apenas nos permitimos ficar imóveis a planar com elas abertas sugerindo sombras e contrastes distintos.

Mergulhei no mar...

Levantei a cortina. Escancarei as janelas. Olhei a vastidão. A luz refletida nas asas do grande pássaro prateado cruzava o ar e espelhava as nuvens e os azuis.

Arribando... Arriando... Arribando... Arriando...  Até sumir numa espumosa nuvem branca, na areia do céu.

Parecia mesmo um mar se quebrando em ondas verticais por sobre os verdes das copas das árvores.

Deu-me vontade de surfar naquela onda anil. E eu voei. Porque eu quis e porque eu tenho um céu só pra mim.

Olhei pra cama. Ele ainda estava adormecido. Tornei a olhar para o lado de fora. Decidi.

Vou deixar para sempre de remover os resíduos do viscoso limpa-vidros.

Salve, salve ARCO DE ÍRIS! Eu quero é crer na junção perfeita de água e luz.

Agradeço-te Íris. Mensageira divina – mitológica deusa grega –, que há de sempre deixar atrás de si um rastro multicolorido em nossa janela.

Porque minha poesia assim o quer e porque na minha vida não há espaços para os dias sem cor.

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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

CHANFRADO

Por Patrícia Leite 
[18.1.2022]




 








Porque a parca noção de tempo que detenho é sempre algo que me escapa? Não sei!

O contador da vida é “eternamente ligeiro” como uma flecha e segue rumo a um alvo imaginário que se pretende sempre atingir...

Penso e pensei várias vezes, ao longo de mais de meio século, que apenas por um “átimo de segundo” gostaria eu de ter o domínio sobre o desenfreado ou de acelerar a lentidão... Avançar... Retroceder... Ir... Voltar...

[...]

Giros completos dos contadores. (RE) encarnação... (RÉ) carnação.

Tenciono ser meio, vezes haste de semicírculo... Quem sabe a corda... Ou a tensão que se subtende arco...

Desejo ser flecha... Dardo, seta, lança... Ponta chanfrada. Todavia, indicativa. Toda. Via.

Ontem, debrucei-me no fio invisível da existência. Pretérita e perdida...

Balancei-me detidamente muitas vezes com o olhar perdido sobre os ponteiros dos relógios.

Sempre deixei a mente rodopiar nos símbolos, luz e sombras que dançam ao som do Tic... Tac...

Por definição, flecha é “símbolo de abertura” ao desconhecido.  

É, portanto, indicação e penetração no alvo. É luz reveladora... É prenhez. Fetação. Mas flecha é, sobretudo, instrumento simbólico de acerto.

“Erro do artefato” que gera vida e não morte. Aparato utilizado pelo CUPIDO para desencadear AMOR, estado de paixão.

Ponteiros... Alvo... Ponto... Flecha... Arco... Tempo... Duração... Entidades.

Mitos que se misturam ao sagrado e ao profano e se escondem entre o profundo e o raso de SER humano e de SER quem se é e nada mais.

[...] Tic... Tac...

Pingo é ponto. Muitas vezes final.


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#relógio