quinta-feira, 11 de julho de 2019

Ligeireza

Por Patrícia Leite
(10 de julho de 2019)




A algazarra da correria matinal sempre soou como música em meus ouvidos.

É uma delícia de se ouvir, ao acordar, os apitos frenéticos da chaleira, a água que cai do chuveiro, o doce som do contato íntimo da xícara com o pires, o tilintar dos talheres sobre a mesa.

Há uma trilha matinal especial que envolve toda a sinfonia do interior de nossa casa e o frenesi que vem de fora da janela.

São os sons do lar que se juntam aos sons da coletividade. É a mescla perfeita do privado e do público...

De repente, tudo são notas: sonoras, olfativas, gustativas, visuais e táteis. É um campo harmônico, uma interseção singular de sentidos.

Fecho os olhos, enquanto escovo os dentes, e ouço o barulhinho métrico dos motores dos carros e motos, a gritaria das crianças a caminho da escola, o coro dos pássaros, os latidos dos cães, a risada de meus amores, o risco delicado da agulha sobre o LP que gira na vitrola e extrai toda a musicalidade de João Gilberto. Eu danço. O “encantado bolachão” gira e nós nos juntamos as notas da manhã.

Sorvo profundamente o aroma do café, enquanto ele escorre languido pelo coador, e o cheiro do pretinho forte se emaranha com as notas do shampoo, do creme de cabelo... E também com o cheiro de hortelã do dentifrício, da loção pós-barba, do desodorante feminino e masculino.

Nossos perfumes rodopiando no ar...

Sim, minha vida tem música, tem trilha sonora e rituais e eu não abro mão de nada disso.

Não posso viver em paz sem sentir, por exemplo, o velho cheiro da pólvora do fósforo que acende a vela de meus santos, tampouco não beber minha dose diária de poesia.

Sou devota de São Francisco de Assis. Não saio de casa sem antes ficar diante do olhar sereno de meu “São Chiquinho”. Fitá-lo por uns instantes, rodeado por seus animais, e fazer minhas orações me dão a certeza de ter entrado em harmonia, prenúncio de dia leve e tranquilo.

Mas o correr da vida, às vezes, embaralha tudo. Mistura os sons, os sentidos. A vida pede pressa e determinação. A vida é assim... Pede coragem, sempre! E, vez por outra, a gente se esquece do que realmente importa.

Dia desses saí correndo, estava muito atrasada para o trabalho. O trânsito um caos. Eu não tinha rezado. Não conversei com meu “Chiquinho”. Como a correria havia me roubado aquela parte tão importante do meu dia?

No CD a voz rouca de Maria Bethânia cantava Santa Bárbara e me fazia companhia para o trabalho. O som do telefone, por Bluetooth, interrompe Bethânia.

Do outro lado, o som grave de uma conhecida voz, sem dizer palavra sobre meu esquecimento, sobre minha correria, sem criticar ou fazer juízo de valor fez o mundo silenciar.

Aquela voz mansa entoava a oração própria das quartas-feiras. Uma delicadeza. Uma gentileza sem igual.

“Correndo” a oração me alcançou. Num pé de carreira, numa ligeireza que só vendo.

Depois do amém, olhei pelo retrovisor e pensei: a gentileza é mesmo um ato poético, é uma ladainha, uma reza. É a maneira mais musical de ser. A gentileza de um poeta será sempre o sol na vida de alguém.

O gesto foi luz, foi melodia, foi profusão de sentidos. O gesto foi ainda maior que a oração, foi bênção.