(10 de julho de 2019)
A algazarra da correria matinal sempre soou
como música em meus ouvidos.
É uma delícia de se ouvir, ao acordar, os apitos
frenéticos da chaleira, a água que cai do chuveiro, o doce som do contato
íntimo da xícara com o pires, o tilintar dos talheres sobre a mesa.
Há uma trilha matinal especial que envolve toda a sinfonia do interior de nossa casa e o frenesi que vem de fora da janela.
São os sons do lar que se juntam aos sons da
coletividade. É a mescla perfeita do privado e do público...
De repente, tudo são notas: sonoras, olfativas,
gustativas, visuais e táteis. É um campo harmônico, uma interseção singular de sentidos.
Fecho os olhos, enquanto escovo os dentes, e
ouço o barulhinho métrico dos motores dos carros e motos, a gritaria das
crianças a caminho da escola, o coro dos pássaros, os latidos dos cães, a
risada de meus amores, o risco delicado da agulha sobre o LP que gira na vitrola e
extrai toda a musicalidade de João Gilberto. Eu danço. O “encantado bolachão”
gira e nós nos juntamos as notas da manhã.
Sorvo profundamente o aroma do café, enquanto
ele escorre languido pelo coador, e o cheiro do pretinho forte se emaranha com as
notas do shampoo, do creme de cabelo... E também com o cheiro de hortelã do
dentifrício, da loção pós-barba, do desodorante feminino e masculino.
Nossos perfumes rodopiando no ar...
Sim, minha vida tem música, tem trilha sonora e
rituais e eu não abro mão de nada disso.
Não posso viver em paz sem sentir, por exemplo,
o velho cheiro da pólvora do fósforo que acende a vela de meus santos, tampouco
não beber minha dose diária de poesia.
Sou devota de São Francisco de Assis. Não saio
de casa sem antes ficar diante do olhar sereno de meu “São Chiquinho”. Fitá-lo
por uns instantes, rodeado por seus animais, e fazer minhas orações me dão a
certeza de ter entrado em harmonia, prenúncio de dia leve e tranquilo.
Mas o correr da vida, às vezes, embaralha tudo.
Mistura os sons, os sentidos. A vida pede pressa e determinação. A vida é assim... Pede coragem, sempre! E, vez
por outra, a gente se esquece do que realmente importa.
Dia desses saí correndo, estava muito atrasada
para o trabalho. O trânsito um caos. Eu não tinha rezado. Não conversei com meu
“Chiquinho”. Como a correria havia me roubado aquela parte tão importante do
meu dia?
No CD a voz rouca de Maria Bethânia cantava
Santa Bárbara e me fazia companhia para o trabalho. O som do telefone, por Bluetooth,
interrompe Bethânia.
Do outro lado, o som grave de uma conhecida voz,
sem dizer palavra sobre meu esquecimento, sobre minha correria, sem criticar ou
fazer juízo de valor fez o mundo silenciar.
Aquela voz mansa entoava a oração própria das
quartas-feiras. Uma delicadeza. Uma gentileza sem igual.
“Correndo” a oração me alcançou. Num pé de
carreira, numa ligeireza que só
vendo.
Depois do amém, olhei pelo retrovisor e pensei:
a gentileza é mesmo um ato poético, é uma ladainha, uma reza. É a maneira mais
musical de ser. A gentileza de um poeta será sempre o sol na vida de alguém.
O gesto foi luz, foi melodia, foi profusão de sentidos. O
gesto foi ainda maior que a oração, foi bênção.