quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Um par de PAUS em minha geografia

Por Patrícia Leite





Era primavera e a cidade começava a vestir cor, depois de um longo período de seca. O ar estava docemente impregnado do cheiro de terra molhada. Mas os dias ainda seguiam cinzas, por causa do segundo turno das eleições.

Estávamos todos vivendo dias hostis. Insultos para todos os lados, posições endurecidas, amigos tombando pelo caminho. Intolerância, radicalidade, ódio em cada recanto. E ela vivia com o olhar borrado de um choro que insistia em cair.

Não estava acostumada com aversões intensas e aquela lama de odiosidade. E, sobretudo, não queria ser parte de toda aquela sujeirada. Aquela mulher era muito ética e pertencia a um tempo em que o respeito era valor primal.

Os jovens, observava ela, estavam sempre com sangue nos olhos e dividiam as preocupações entre os insultos, o voto, o vestibular e o Enem.

As redes sociais estavam em pleno colapso, uma espécie de ringue com direito a chutes, socos, empurrões e toda sorte de agressões possíveis.

As redações, nem se fala, essas estavam um alvoroço só e as Assessorias de Comunicação estavam igualmente frenéticas.

Os partidos se mobilizavam e se agrupavam na tentativa de virar o jogo. “Eleitores” acelerados fechavam acordos e faziam negociatas antes mesmo de ter sido computado o primeiro voto.

E tudo o que ela pensava, naquele instante, entre o gole de café quente que descansava no console do carro, o barulho do limpador de para-brisas, as notícias da Voz do Brasil e as buzinas dos mais apressadinhos, era se conseguira ou não dominar os benditos palitos.

Ela queria aquela pausa, precisava daquela pausa. Ele também. Tudo que queriam estava no simples. Ingerir algumas cápsulas de Cora, rir, dançar, ouvir música, ler e declamar poesias.

E foi com esse pensamento que ela, horas antes do fim do dia, pegou o Whats App e arriscou saber se o caos do dia permitiria o encontro:

– “Passei a semana treinando e comendo de palitinhos. Tive algum nível de evolução. Mestre, que tal um teste para conferir a minha aptidão?

Ele: – Enem do Sushi? 


Gracejou ele e ela caiu na risada!! Prosseguiu ele: Sexta, os portões fecham às 20h30!

Ela: – Chegarei em tempo de pegar os portões abertos e fechou o App sorrindo para si.

Leve e brincalhão, sem dúvida, esse era o tempero característico deles, pensou… Sim, esse era sempre o sabor daqueles sempre “primeiros encontros”.

No caminho para casa ela ruminou: – Sempre tive uma enorme curiosidade sobre onde e porque surgiu a singular arte de comer com os tais hashi. Ao chegar em casa, em uma rápida pesquisa descobriu que eles começaram a ser usados no ano de 2.500 Antes de Cristo (AC).

Aponta a história que os primeiros foram utilizados como suporte para grelhar carnes em braseiros e que para não queimar as mãos, ao se servirem, deu-se início ao costume de usar palitos, feitos de bambu, para se servir.

Ela queria surpreendê-lo, embora ainda não se sentisse muito à vontade com o danado par de palitinhos de madeira. Com seu jeito meio desajeitado, resolveu contar com outros atributos e investiu na caracterização.

Virou uma Índia-Gueixa. Colocou uma Túnica japonesa azul, sapatilhas douradas e prendeu os cabelos em um coque alto ornado com os hashis de penteado. Uma maquiagem amarrou o look.

Ao chegar, sorriu e disse: se eu for reprovada na técnica, espero ganhar pontos por vir caracterizada. Tudo estava no clima. Sim, definitivamente, o jantar era temático.

A mesa estava posta. Os pratos rubros na superfície se opunham ricamente ao fundo preto e o descanso de palitos branco ressaltava os palitos que combinavam com as cores rubro-negras dos pratos. As taças, a vela a música e aquele sorriso largo davam a certeza de que seria mais uma noite especial.

O que nenhum dos dois sabiam é que o deguste de ser sushi é algo inexplicável aos sentidos. Os tais pauzinhos japoneses, normalmente utilizadas como talheres foram transformados em armas nas mãos daquele carpinteiro.

Primeiro pegou-lhe pelos lábios e trouxe até a boca. Depois, pinçou as orelhas e arrastou o naco humano de carne até os destes e mordiscou. Ela entrou em um turbilhão. Um misto de medo do novo e lascívia percorriam aqueles corpos.

As pequenas varetas pareciam ter alma e vontade própria ao subir e descer pelo colo feminino, mordiscar o umbigo, deslizar pelo costado, subir e descer os montes, derrapar nas curvas.

Ele pinçou cada gota excitada daquele corpo com a destreza de quem tem o velho hábito de manusear os palitos. Ela sequer conseguia lembrar como tudo voou até ali. Os palitos foram parte daquela paisagem até serem derrubados no chão, junto com seus corpos tremê-los e suados.

De repente, tudo era apenas respiração cadenciada. No pensamento, o título de uma nova crônica dançava com os dois entre os lençóis: “O dia em que ele e seus hashis me fizeram Sushi”. Ele pareceu ler seus pensamentos e os expressou em voz alta. Sorriram, antes de adormecerem.

Sim, juntos eles ressignificaram papéis. Os dele, os dela e porque não dizer: dos palitos.




Brasília, 26 de outubro de 2018.

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