quinta-feira, 28 de novembro de 2013

INTIMAÇÃO

[série contos]
Por Patrícia Leite – 28/11/2013

Ele entrou na sala de reportagem como quem está fugindo da polícia. Ou como se fosse um policial correndo atrás de um bandido. No caso, uma bandida.

– Onde ela está? Berrou, com o rosto transtornado.
– Ela quem? Respondeu um coro de vozes estupefatos.
– Ela quem? Ele devolveu a pergunta.

De fato, todos sabiam.

– Não veio hoje, disse um dos cinegrafistas!
– Mentira, grunhiu ele!!

E era...Não adiantava tentar acobertar.

Aqueles saltos quinze no porcelanato tinham um som inconfundível e todos sabiam. Até poderia ser uma outra mulher apressada para o trabalho, alguns ponderaram isso mentalmente, caso o compasso urgente deste caminhar não tivesse trazido consigo e derramado no ar aquele perfume marcante.

Não era só a métrica provocada pelos saltos dela que denunciavam sua estada em um lugar. O que a delatava era um conjunto de sons, cheiros, sabores e movimentos muito peculiares.

Ninguém podia culpar aquele homem pelo estado de loucura em que se encontrava. Seria um grande baque para ele ser rejeitado por ela.

Acaso...Destino...Quem sabe?

O fato é que ele nunca entendeu porque ele sempre foi o oficial de justiça escalado para intimá-la às audiências de uma separação extremamente conturbada e que colocava fim a um casamento de duas décadas.

Certa vez, em uma das muitas ocasiões em que veio intimá-la, ao longe e apesar da aparente discrição, foi possível ouvi-lo confessar:

– Rezo todos os dias para que este litígio demore. Assim, posso vê-la muitas vezes.

Aquele comportamento era absolutamente inadequado para um oficial de justiça. Por mais que ele tentasse ser discreto, ele não era exatamente o tipo de homem que pudesse passar despercebido. Branco, mais ou menos uns 90 quilos, um metro e noventa de altura, olhos azuis. Poderia ter a mulher que quisesse. Mas ele a quis. Aquela mulher que não queria pertencer a mais ninguém.

Ele não deu ouvidos aos gritos da sua intuição e aquele encantamento inicial virou paixão e, depois, doença, obsessão. Na vida daquela mulher de sorriso largo e olhos tristes, como ele tantas vezes mencionou, apesar de seduzi-lo, não abriria espaço para ninguém chegar.

Era comum ouvi-la dizer:

Estou que nem cachorro mordido de cobra, corro de uma simples linguiça para evitar um outro ataque. Outras vezes, falava sorrindo:

– Gato escaldado tem medo de água fria. Tô bem como estou. Consigo ser feliz assim. Sou uma ótima companhia para mim mesma. E soltava uma longa e sonora gargalhada para depois completar: – Aquela que se acha.

Mas ela deveria ser mesmo uma boa companhia para si mesma. Sempre foi muito bom estar ao seu lado. Nos períodos de férias, todos reclamavam sua ausência. E o seu retorno era recheado de histórias interessantes, de escaladas, mergulhos em alto-mar, passeios de barco, expedições em caverna, trilhas com centenas e centenas de quilômetros...

Tudo naquela mulher tinha um pulso vital que nos contagiava. Amava cozinhar e receber amigos. Os mais próximos diziam que seu hálito tinha um cheiro exótico de gengibre e canela. Contraste muito interessante, diga-se de passagem, com aqueles lisos cabelos negros e a pele sempre morena. Para dizer o mínimo, era mulher que não passava incólume.

Enquanto todos absorviam a cena e ouviam a vociferação do oficial, ela entrou na sala, olhou a todos e sentenciou:

Houve um tempo em que dei um boi para não participar de um barraco e quando entrava dava uma boiada pra não sair, sorriu com sarcasmo, depois, virou-se por cima dos saltos, olhou sobre os ombros e disse: acalme-se homem. Não preciso de testemunhas, a não ser as que serão absolutamente necessárias. Pare de estardalhaço. Não foi você mesmo que disse que não era um pedido de amor? Que se tratava de uma intimação? Vim só pegar uma caneta.

As mulheres suspiraram de alívio – enfim ela foi fisgada, saiu da pista. Os homens deixaram escapar um certo gemido que em um primeiro momento parecia ser de dor. No fundo, todos se sentiram meio viúvos, meio divorciados. Afinal, ela rasgou qualquer possibilidade, qualquer esperança. Estava amando novamente.








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