sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Umami, quinto sabor

Por Patrícia Leite
[28.1.2022]

Foto: Patrícia Leite













 


– Sirva-se à vontade, por favor.

 

A mesa estava posta com nossa comida preferida. O vinho tinto era perfeito para a ocasião e guardava segredos, na temperatura adequada, para serem revelados no decorrer da noite.

 

No ar, um buquê singular...  Uma mistura eclética de frutos do mar, pólvora recém-queimada, parafina, shampoos, cremes e os perfumes de nossas peles.

 

O ambiente era íntimo. Meia luz. Velas acesas. Chamas douradas dançando nos pelos, nas faces, nos olhos, nos espelhos e nas pernas nuas...

 

As labaredas caminharam para além da nossa carne. Rodopiaram pela casa, em todos os lugares, nos móveis, nas cristaleiras, no chão negro do porcelanato.

 

Sentamos um frente ao outro. Numa distância em que nossas mãos pudessem se tocar sem esforço.

 

Afastei para o meu lado direito o vaso de flores do campo que enfeitava o centro da mesa, mas que não me permitia vê-lo. 

 

Sorri. Ele sorriu de volta.

 

– Melhor desse jeito. Assim te vejo.

 

Sem tirar os olhos de mim, ele pegou a garrafa Camino Real – Cabernet Sauvignon. Abriu. Depositou o vinho na taça com mais generosidade do que pede a etiqueta.

 

Gracejou, maliciosamente.

 

– Intenso! Disse.

 

Devolvi a provocação.

 

– Belas lágrimas rubras. Uma estrada, um caminho que leva ao fundo. Um mergulho. Embora se pareçam mais com longas pernas abertas a oferecer-se. Um convite à degustação. Sem dúvida.

 

Girei a taça, sorvi as notas. Revelei.

 

– Ameixa PRETA [madura], couro curtido, carvalho, fumaça... Pernas de rubi do Vale do Cachapoal...

 

Não precisamos dizer um ao outro palavra alguma... Semicerramos os olhos apenas.


 “Suspendemos o tempo”, relativizamos a contagem das horas. Voltamos ao pé da Cordilheira... [Re] visitamos a aventura Andina. Num zás- trás... fomos e voltamos.

 

A nossa poética está na maneira de olhar o mundo e CONTER determinados eventos, brincar com a dubiedade das palavras, isolar-se do meio externo...

 

A nossa magia tem morada confortável na dinâmica de “encapsular” especiarias.

 

Sabores perfeitamente integrados. “Paleta gastronômica” – memórias gustativas que oferecem sabores peculiares a existência.

 

Urge temperar as horas com a mais perfeita explosão de sentidos. Sempre!!

 

– Ergamos um brinde, eu disse! Ao quinto sabor – Umami!!

 

Ele apenas me olhou com aquele olhar amadeirado de quem deixa as palavras amadurecerem no seu barril pessoal.

 

– Segui dizendo: Sim, há um quinto sabor. Ele está na soma. Eu o chamo de poesia. 

 

Baixinho, quase imperceptível, mas emprestando uma certa mística àquele ambiente, tocava na “vitrolaRelógios de Sol.

 

A mansa voz de Nei Lisboa se espalhava pelo ar e preenchia os espaços com a canção Pra te Lembrar.  


Nada é por acaso. Dancei com a taça elevada um pouco acima da minha cabeça. Voltei ao brinde.

 

– Sirvam-se de nossa poética todos os que tenham capacidade de enxergar nela o verdadeiro sabor da vida.

 

Preto ergueu a taça, tilintou sonoramente os cristais e respondeu:

 

– Tim...Tim... Aos capazes!!

 


15 comentários:

  1. Que deliciosa embriaguez! Bebi cada palavra! Quanto sabor!

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    1. Mara, minha querida, que delícia receber seu comentário. Saudades demais de você. Bjokas

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    1. Vcs são sempre convidados para esse nosso SARAU privado. Saudades demais de vocês. Bjokas.

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  3. Meu Deus que é isso?! que perfeita fusão entre a vida e a arte, simplesmente maravilhoso!! vivam intensamente este amor lindo, e que lhes trazem tão belas inspirações!!

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    1. Olá!! Meu querido leitor, seu comentário aquece meu coração. Nem sei que é vc. Mas ergo um brinde. Tim… Tim… vc é um dos capazes.

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  4. Hermosa poesía, me hice protagonista de esa exquisita copa de vino, y como chilena orgullosa de nuestros vinos, gracias paty felicidades y gracias por tan lindas palabras, un abrazo a la distancia 😘

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  5. Como não degustar cada palavra dessa??? É sorver um bom e acalorado conto e a narrativa em prosa te leva para "dentro" da história e vc se torna uma terceira personagem ou até mesmo a própria, pois se torna a "sua" história...

    Capacidade de transposição, incorporação, assemelhação, afinidade, homogeneização daquilo q se quer vivenciar ainda, mas não experenciou pq a história não é sua, é de uma pessoa q é capaz de te levar por outros mundos, apenas pelas palavras...

    Parabéns, algo raro a quem se diz escritor...

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  6. Sem palavras para agradecer o quanto suas palavras fazem o sangue desta autora correr mais rápido nas veias. Muito obrigada pelo seu riiiico comentário, professora Lúcia. Saudades demais de você. 😘😘😘😘

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  7. Um texto , um deleite nas palavras que ressoam o gosto do amor e das fragrâncias. Lindo Pati e gratidão por compartilhar a poesia de momentos da vida

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  8. De nada valeria sua brilhante competência textual, não fosse o AMOR.

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