segunda-feira, 5 de agosto de 2019

À MESA, COMO CONVÉM


Por Patrícia Leite

















Quando finalmente tivemos a coragem de colocar um fim naquela relação que vinha sendo forçadamente aquecida em banho-maria, numa tentativa inútil de manter vivo o que já estava, há tempos, gelado como cadáver, mergulhei nas águas da solitude, me perdi em correntezas de vazios e estranhamentos. Mas deixei a força do rio me levar.

E como todo rio corre para o mar, pude ver os sedimentos amealhados ao longo do curso de minhas águas e meus seixos:  fragmentos de acordos, cascalhos de hábitos, calhaus de amor. Quando se vive muito tempo imerso num pseudo-relacionamento é difícil abrir as comportas, deixar ir.

Eu estava atormentada, brava comigo mesma, por ter demorado tanto tempo empurrando o inevitável com a barriga. Eu parecia mar de ressaca. Os nervos eram como ondas violentas estourando na areia.

Por anos, eu havia abandonado a minha própria natureza de ser. Eu estava quebrada como ondas raivosas. E esse mar revolto invadia a minha urbanidade e destruía todo verniz social que me fora imposto. Quanto tempo desperdiçado. Esse era o meu cenário interno. Destroços. Uma visão aflita do que foi, do que não deveria ter sido e que não poderia ser modificado.

De repente, me percebi. Eu estava, pela primeira vez, batendo suave na areia, como o mar em maré baixa, em dia de pouco vento e céu de brigadeiro. Os azuis se tocavam, o do céu e o do mar. Um estado de autocontemplação do oceano que há em mim.

Estávamos acostumados um ao outro, velhos hábitos e recordações, mas o amor já não era mais um prato saboroso à mesa. Era um prato frio e ensosso.

A frase sentença da cantora Nina Simone rodopiava em minha mente: “Você tem que aprender a levantar-se da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido”. Ela estava certa. Não havia mais sentimentos ali.

Quando emergi daquela zona abissal do costume de estar junto, deixei de cometer “gafes à mesa”. Me retirei. Finalmente, eu estava novamente viva, plena.

Por quê?? Porque não nasci de forja morna. Sou ferro em brasa. Sou como o aço de Damasco –  forjada em altas temperaturas para ser lâmina de espada de borda afiada e resistente, com faixas e manchas que lembram fluxo de água.

Por que a vida é isso: alta temperatura, resistência, fluxo, um fio.

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